quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

Modelos em construção

"And this is the room where the future pours into the past via the pinch of the now." (Pratchett, 1991)


Ficamos tão animados com o que hoje podemos fazer com a tecnologia que, às vezes, esquecemos o que a tecnologia realmente consegue fazer. Seguindo a bula do modelo clássico do que seja a tecnologia e suas possibilidades. Uma dessas possibilidades é que a tecnologia está começando a ver. E, como ela, nunca funciona independente -mas sim em sistemas mais complexos- os sistemas tecnológicos adquirem também essa capacidade.
Os sistemas começam a ver, a tecnologia começa a ver.
A tecnologia nos vê.


Já vão tempos desde os antigos, e difíceis, OCR. Hoje temos de scanners e câmeras digitais, até reconhecimento facial à distância.
Veja bem que não esqueci dos dados lógico-matemáticos, da Big data, que são matéria essencial da tecnologia. Falo da criação de cenários bi- e tri-dimensionais, e sua comparação com o ambiente que os rodeia. Sua transformação em dados.
E a aprendizagem resultado desta comparação.

Num post anterior tinha previsto que as vitrines do futuro fariam reconhecimento e avaliação do cliente e daí apresentariam individualmente produtos dentro da sua (dele) capacidade de compra.
Bom, meninos e meninas, a capacidade já existe faz tempo. O que, até agora, nos impede de fazê-lo não tem nada a ver com a tecnologia.


A tecnologia documenta, não somente, nossos dados como magnitudes, mas agora também o ambiente onde eles acontecem. Ela consegue transformar tudo em sequências binárias de 0s e 1s fractais, que entende e consegue compartilhar com outros sistemas semelhantes a ela.

No desenvolvimento da tecnologia, o mais perto que chegamos de conceitos como: ética e moral, são as Leis da Robótica, de Asimov. O resto depende da intenção dos desenvolvedores e da cultura onde eles próprios acontecem. Lembremos que, o outro lado do outro é, quase sempre, nós.


Temos que entender o básico desta situação. Os elementos que a compõem. E dão forma aos modelos. A tecnologia nasce da gestão de documentos e processos, seu fluxo. Os documentos nascem da gestão analógica da informação. São conhecimento explícito. Parado, enquanto gravado, impresso, dito. Informação+suporte físico igual documento (Rezende, 2005). A Gestão Documental acontece, primeiro e em grande parte, fora da tecnologia. É, fora da tecnologia também, que acontece até agora, a maior parte da inovação. 
inferência e aprendizagem somente acontecem quando, na prática, aplicamos aqueles conceitos que foram adquiridos do conhecimento explícito. Aprendizagem; quando sabemos a diferença entre o que era e o que é.

Enquanto continuemos assumindo a tecnologia como propriedade particular corporativa, e não como ferramentas que nos auxiliam a executar tarefas que, de outra forma, seriam impossíveis ou demoradas, continuaremos limitados à surpresa do desenvolvimento. Sempre alguns passos atrás do entendimento do que realmente podemos fazer. Como diz Morville (2014), "uma conclusão ignorante e perigosa. A verdade é que o modelo está errado".
A começar pelas perguntas.



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domingo, 12 de janeiro de 2020

Dias de Cinza

Quando dei entrada no PS tinha todos os sintomas e um diagnóstico errado. Falência cardíaca, inchaço do peito até as unhas dos pés. Os pulmões cheios de líquido, pressão alta, incosciências e surtos psicóticos de alucinações variadas. Troca de gases errática. Tive 99% de CO2 várias e doloridas vezes. Vinham me espetar o pulso diariamente. De meia em meia hora me acordavam para pressão, glicemia e para que tomasse meus remédios para dormir. TODOS os quarenta e cinco dias. E noites.

Dos primeiros dias tenho alguns recortes sem sentido. Alucinei muito e dei trabalho a minha companheira e cuidadores. Parecia um antigo rádio Global. AM, FM, ONDAS LARGAS, ONDAS CURTAS, ONDAS TROPICAIS e "ET Phone Home". Alucinações e sonhos na mesma frequência e de todos os sabores.

Dos sonhos, me lembro de três. Um deles em farsi. Sim, aquilo não era um idioma que (até hoje) reconheça. Ou, me lembre de ter ouvido jamais. Devem ter sido minhas impressões dos médicos conversando perto de mim, enquanto meu cérebro desligava todos os sistemas secundários, e seguia à velocidade de empuxo. Voltava à fase vegetativa. Repolhos escutam, mas não entendem. E EU era um repolho... um repolho roxo.
Azulão como o Sr. Ganesha.
Um outro, muito elaborado, sobre uma peça de nanotecnologia que, quando 'aplicada' ao paciente, era capaz de mudar nossas cadeias de DNA. Muito melhor que o CRISPR. Sem as contra-indicações, nem reações secundárias. Bom, a não ser mudar o corpo todo, eliminando doenças, mortalidade, gênero e identidade. Ficávamos todos iguais. Ninguém morria e ninguém nascia. Éramos capazes de aprender e comunicar-nos com o toque. Sabíamos, pois éramos um com todo o resto. Todo mundo. Um, como Deus manda e as religiões não aceitam.
O terceiro, que bem podia ser o primeiro, me mostrava na cama da UTI, onde por algum truque de acústica conseguia escutar, com muita claridade, o que era dito do outro lado da sala. Naquela cama estava um ímã árabe. Senhor de idade que tinha vindo ao Brasil para um casamento. Durante a viagem passou mal e foi internado às pressas no hospital. Seu estado só piorava, o que criou comoção na comunidade. Seus acompanhantes exigiam que os ritos árabes fossem seguidos. A confusão se deu quando uma mulher apareceu para aplicar os ritos. Vinha acompanhada de um grupo de pessoas que a chamava de "Princesa". Enquanto o grupo do imã se esforçava, de todas as maneiras, de expulsá-los de lá. Faziam isso enquanto atrapalhavam toda a rotina da unidade. O velho morreu, e as coisas se complicaram. Lamentos, choro e gritaria em quanto a enfermagem tentava, em vão, acalmar os ânimos, atender os outros pacientes e manter certa dignidade.
Gente, era isso que eu via do meu leito, quando "acordava".
Parecia uma rodoviária na minha cabeça!
Estava morrendo, não há limites de civilidade nessas ocasiões. Meu cérebro era um garanhão esquecido no pasto. Assustado como nunca estive antes.

Mais de quinze dias de exames diários. Teve até melhor de três, que não funcionou. Inconclusivo. Nenhum diagnóstico que servisse. Meus índices mui lentamente voltaram a entrar no normal. De cima para baixo. Um medo terrível de não saber do que morri. Se alguém alguma vez convidar você para uma eletromiografia, polidamente decline.

Lentamente fui reconhecendo o ambiente e as pessoas nele inseridas. Reconheci minha esposa e seus esforços para me manter vivo. "Above and beyond the call of duty", diria o DoD, no pedido de reconhecimento. E uma medalha colorida. Eu sou um prêmio duvidoso.
Ao fim de um mês e pouco, veio o diagnóstico "definitivo"; esclerose lateral amiotrófica, ELA. Uma das doenças neurológicas que compõem o triunvirato; Alzheimer, Parkinson e ELA. Degenerativa, não tem cura, só tratamento paliativo.

"Quando confrontamos nossa mortalidade, mudamos de marchas", disse Suzanne Ciani. Conhece?  Pois devia.
Mas ela me traz aonde quero. Seja lá o que fui, estando vivo posso mudar para melhor. Não importa o que precise fazer.
Como terei que ter paciência, serei melhor, a começar com minha esposa e o ambiente que nos rodeia.


Hoje, quem me vê não percebe a doença ou os ataques de pânico diários que tive. Mas, não consigo andar um quarteirão sem me sentir extenuado. Falta de ar. E não tenho a menor força. Preciso de um aparelho para respirar e poder dormir. Não posso tomar calmantes, nem anestesia. O único que não parou é o cérebro. Mas já sabemos que ele não funciona tão bem assim.


Por isso, meninos e meninas, divirtam-se, pois desta vida não sairemos vivos.

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Meus muito, muito, muito obrigado para as Dras. Ionara, Paula, Rebeca e Andressa. Aos Drs. Pedro e Frederico e todo o pessoal de apóio tático do Hospital das Clínicas e do InCor de São Paulo.
À minha amiga Rai e ao meu novo amigão Tadao, pelo companheirismo.


segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

Couvert #1

#1

- Dei a ração para a cachorra e ela ficou me olhando, como a pedir mais.
- Olhei pra ela e falei: "Só tem isso. Queres algo mais? Acompanhamento musical, por acaso?
- Lá vai então: "Fui num samba na casa do Neco. Só que o Neco não a-pareceu!"
- Lamento, só sei até aí dessa música." - disse, entre envergonhado e maroto. Quem me conhece sabe (ou deveria imaginar) que cantar não é um dos meus atributos.
A cachorra comeu rápido, sem reclamar mais.


Vai que eu cantasse de novo.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

Dâmocles

Lembra da história de Dâmocles?

Sendo eu, cria de Jesuítas, é quase que uma das minhas mais antigas lembranças. Eles têm lá suas técnicas de fazer lembrar, como seu, o aprendizado. Transformando, o que para alguns seria "cultura inútil", em ferramentas de trajeto para a vida toda.

A história diz que Dâmocles era um cortesão na corte de um déspota. Que quis ser déspota no lugar do déspota e acabou com uma espada afiada apontada à sua cabeça. História toda cheia de moral e detalhes, como um caleidoscópio.

Cada um vê o que entende ou, o que é pior e pouco usual, tenta entender o que vê. (Mais difícil)
Desejos e consequências, nem sempre nessa ordem. Uns e outros, nem sempre bons. Tendemos a esquecer que o acaso também faz parte dessa equação toda. Porções quânticas de diferença presentes na rotina fazem do resultado final uma surpresa.
Nós, seres humanos, levados ao extremo de dados, somos mais um sistema aberto. E, de livro, sabemos que o acaso é o elemento principal de tais sistemas abertos.

Afinal, o que é o acaso senão tudo o que não sabemos, não conhecemos, não deveria nem poderia acontecer. Mas, mesmo assim: acontece, aparece, está alí. Para alguns cientistas, é a razão desconhecida. Para outros, esticando a sorte; é o Serendipity.

Mas, Dâmocles, parecia tão linear? Sim, só que não.
Ser déspota no lugar do déspota, por si, já seria uma história. Linear que nem bula de Maizena. Mas a espada afiada apontada à cabeça é o acaso da história. Um píccolo no auditório.
O famoso: "tava indo tão bem".

Surpreenda-se se, no outono da sua planejada vida, tudo estiver lilly white e organizadinho.