domingo, 12 de janeiro de 2020

Dias de Cinza

Quando dei entrada no PS tinha todos os sintomas e um diagnóstico errado. Falência cardíaca, inchaço do peito até as unhas dos pés. Os pulmões cheios de líquido, pressão alta, incosciências e surtos psicóticos de alucinações variadas. Troca de gases errática. Tive 99% de CO2 várias e doloridas vezes. Vinham me espetar o pulso diariamente. De meia em meia hora me acordavam para pressão, glicemia e para que tomasse meus remédios para dormir. TODOS os quarenta e cinco dias. E noites.

Dos primeiros dias tenho alguns recortes sem sentido. Alucinei muito e dei trabalho a minha companheira e cuidadores. Parecia um antigo rádio Global. AM, FM, ONDAS LARGAS, ONDAS CURTAS, ONDAS TROPICAIS e "ET Phone Home". Alucinações e sonhos na mesma frequência e de todos os sabores.

Dos sonhos, me lembro de três. Um deles em farsi. Sim, aquilo não era um idioma que (até hoje) reconheça. Ou, me lembre de ter ouvido jamais. Devem ter sido minhas impressões dos médicos conversando perto de mim, enquanto meu cérebro desligava todos os sistemas secundários, e seguia à velocidade de empuxo. Voltava à fase vegetativa. Repolhos escutam, mas não entendem. E EU era um repolho... um repolho roxo.
Azulão como o Sr. Ganesha.
Um outro, muito elaborado, sobre uma peça de nanotecnologia que, quando 'aplicada' ao paciente, era capaz de mudar nossas cadeias de DNA. Muito melhor que o CRISPR. Sem as contra-indicações, nem reações secundárias. Bom, a não ser mudar o corpo todo, eliminando doenças, mortalidade, gênero e identidade. Ficávamos todos iguais. Ninguém morria e ninguém nascia. Éramos capazes de aprender e comunicar-nos com o toque. Sabíamos, pois éramos um com todo o resto. Todo mundo. Um, como Deus manda e as religiões não aceitam.
O terceiro, que bem podia ser o primeiro, me mostrava na cama da UTI, onde por algum truque de acústica conseguia escutar, com muita claridade, o que era dito do outro lado da sala. Naquela cama estava um ímã árabe. Senhor de idade que tinha vindo ao Brasil para um casamento. Durante a viagem passou mal e foi internado às pressas no hospital. Seu estado só piorava, o que criou comoção na comunidade. Seus acompanhantes exigiam que os ritos árabes fossem seguidos. A confusão se deu quando uma mulher apareceu para aplicar os ritos. Vinha acompanhada de um grupo de pessoas que a chamava de "Princesa". Enquanto o grupo do imã se esforçava, de todas as maneiras, de expulsá-los de lá. Faziam isso enquanto atrapalhavam toda a rotina da unidade. O velho morreu, e as coisas se complicaram. Lamentos, choro e gritaria em quanto a enfermagem tentava, em vão, acalmar os ânimos, atender os outros pacientes e manter certa dignidade.
Gente, era isso que eu via do meu leito, quando "acordava".
Parecia uma rodoviária na minha cabeça!
Estava morrendo, não há limites de civilidade nessas ocasiões. Meu cérebro era um garanhão esquecido no pasto. Assustado como nunca estive antes.

Mais de quinze dias de exames diários. Teve até melhor de três, que não funcionou. Inconclusivo. Nenhum diagnóstico que servisse. Meus índices mui lentamente voltaram a entrar no normal. De cima para baixo. Um medo terrível de não saber do que morri. Se alguém alguma vez convidar você para uma eletromiografia, polidamente decline.

Lentamente fui reconhecendo o ambiente e as pessoas nele inseridas. Reconheci minha esposa e seus esforços para me manter vivo. "Above and beyond the call of duty", diria o DoD, no pedido de reconhecimento. E uma medalha colorida. Eu sou um prêmio duvidoso.
Ao fim de um mês e pouco, veio o diagnóstico "definitivo"; esclerose lateral amiotrófica, ELA. Uma das doenças neurológicas que compõem o triunvirato; Alzheimer, Parkinson e ELA. Degenerativa, não tem cura, só tratamento paliativo.

"Quando confrontamos nossa mortalidade, mudamos de marchas", disse Suzanne Ciani. Conhece?  Pois devia.
Mas ela me traz aonde quero. Seja lá o que fui, estando vivo posso mudar para melhor. Não importa o que precise fazer.
Como terei que ter paciência, serei melhor, a começar com minha esposa e o ambiente que nos rodeia.


Hoje, quem me vê não percebe a doença ou os ataques de pânico diários que tive. Mas, não consigo andar um quarteirão sem me sentir extenuado. Falta de ar. E não tenho a menor força. Preciso de um aparelho para respirar e poder dormir. Não posso tomar calmantes, nem anestesia. O único que não parou é o cérebro. Mas já sabemos que ele não funciona tão bem assim.


Por isso, meninos e meninas, divirtam-se, pois desta vida não sairemos vivos.

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Meus muito, muito, muito obrigado para as Dras. Ionara, Paula, Rebeca e Andressa. Aos Drs. Pedro e Frederico e todo o pessoal de apóio tático do Hospital das Clínicas e do InCor de São Paulo.
À minha amiga Rai e ao meu novo amigão Tadao, pelo companheirismo.


2 comentários:

  1. Sem palavras. Que a vida vivida seja sempre lembrada e vivida na alma. Saudade...amo vcs

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  2. Lionel, como vc consegue escrever um texto tão lindo, mesmo falando deacontecimentos tão difíceis?....
    É lindo ver como vc é gentil em agradecer as pessoas que te ajudaram e estarão sempre perto.
    Te conhecer é um privilégio!

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